Rua da Graça 25
Tradução para o português de trechos de Ressuciter, do escritor Christian Bobin.
Christian Bobin (1951-2022) nasceu em Creusot, interior da França. Foi traduzido para mais de quarenta idiomas. Escreveu mais de sessenta livros, muitos dos quais foram premiados. Sua forma de escrever passa pelas pequenas histórias e pelo fragmento, pelas cartas, poemas em prosa, pelo ensaio autobiográfico etc. Meditativo e luminoso, seu estilo surpreende sempre o leitor. Seu olhar é o da contemplação amorosa do mundo e tem como base a vida cotidiana, e a celebração da existência. Seu livro Le Très-Bas, uma meditação biográfica sobre a vida de são Francisco de Assis, de 1992, consagrou-o para o grande público.
Traduzi várias passagens do livro Ressusciter, Gallimard, 2001.
RESSUSCITAR
Um leito de luz, uma cadeira de silêncio, uma mesa de madeira de esperança, nada mais: tal é o quartinho onde a alma é inquilina.
*
Há uma estrela posta no céu para cada um de nós, longe o suficiente para que nossos erros nunca venham a manchá-la.
*
É uma estranha experiência ir ao cemitério visitar alguém que você amava. Começa com um passeio suave e despreocupado, quase sonhador, até aquele instante no qual já não é possível de dar um único passo adiante e onde se encontra defronte de uma lápide como diante de um obstáculo insuperável. Prepara-se para deparar-se com alguém e a pessoa não está lá, não há mesmo mais nada, como se a terra fosse plana e se tivesse chegado por distração ao seu limite. Diante do túmulo de meu pai, sinto-me como diante de um muro, no fundo de um impasse. Nada mais me resta que jogar meu coração por cima, como fazem as crianças quando lançam um balão sobre um muro circundante, pelo prazer um pouco ansioso, em ir procurá-lo, de penetrar numa propriedade desconhecida. Ignoro sobre qual cascalho meu coração repica quando o jogo em cima de um túmulo mais alto que o céu, mas eu sei que esse gesto não é em vão: ao fim de alguns segundos ele retorna-me, pleno de alegria e tão fresco quanto o coração de um pardal recém-nascido.
*
O dia no qual consentimos um pouco de bondade é um dia que a morte não poderá mais banir do calendário.
*
Uma inteligência sem bondade é como paletó de seda vestido por um cadáver.
*
O dia do enterro de sua mãe, C. foi picada por uma abelha. Havia um mundo de gente no pátio da casa da família. Eu vi C. no infinito dos seus quatro anos, a primeira surpresa foi com a dor da picada, pouco antes de chorar, procura avidamente dois olhos, entre todos que estavam ali, aquele que a consolou desde sempre, e detém brutalmente essa busca, tendo subitamente entendido tudo de ausência e morte. Tal cena, que não durou mais que alguns segundos, é a mais pungente que jamais vi. Há uma hora na qual, para cada um de nós, o conhecimento inconsolável adentra a nossa alma e a despedaça. É à luz dessa hora, quer ela tenha chegado ou não, que deveríamos todos conversarmos uns com os outros, amarmos uns aos outros e mesmo o máximo possível rirmos juntos.
*
Eu caminhava no parque da Vidraria, com minha mãe no meu braço direito, quando vi, por sobre à minha esquerda, vibrando rente à relva, uma borboleta cujas asas roxas se assemelhavam ao fragmento de uma carta rasgada, caída de um céu místico. Minha mãe caminhava tão lentamente, ofegante pela ladeira onde havíamos nos perdido, que eu pude, durante vários minutos, exercitar com o mesmo cuidado as duas atividades que abarcam o campo da minha vida e não podem jamais ser realizadas simultaneamente: estar presente àqueles que amo, e me ausentar na leitura de um texto escrito naquele dia com tinta roxa e vibrante com uma verdade insubornável.
*
As luzes que nos são concedidas são tão numerosas que, mesmo que quiséssemos, não poderíamos desperdiçá-las completamente.
*
Durante um ano, visitei meu pai na casa onde sua memória, dia após dia, se reduzia como um vapor num vidro, ao toque do sol. Ele nem sempre me reconhecia, mas isso não tinha importância. Eu sabia bem, eu sabia, que ele era meu pai. Ele, no entanto, poderia se permitir tal esquecimento. Há, às vezes, entre duas pessoas um laço tão profundo que continua vivo mesmo quando um dos dois não sabe mais vê-lo.
*
Meu coração raramente desperta, mas quando o faz é para saltar prontamente sobre o eterno como sobre uma presa escolhida.
RESSUSCITER
Em lit de lumière, une chaise de silence, une table em bois d’espérance, rien d’autre : telle est la apetite chambre dont l’âme est locataire.
*
Il y a une étoile mise dans le ciel pour chacun de nous, assez éloignée pour que nos erreurs ne viennent jamais la ternir.
*
C’est une étrange expérience que d’aller au cimetière rendre visite à quelqu’um qu’on a aimé. Cela commence par une promenade douce et nonchalante, presque rêveuse, jusqu’à cet instant où il n’est plus possible de faire um seul pas um avant et où on se trouve devant une pierre tombale comme devant um obstacle infranchissable. On s’apprêtait à rencontrer quelqu’um et il n’y a personne, il n’y a même plus rien, comme si la terre était plate et qu’on um avait par distraction atteint une bordure. Je me sens devant la tombe de mon père comme devant um mur, au fond d’une impasse. Il ne me reste plus qu’à lancer mon coeur par-dessus, comme font les enfants quand ils jettent um ballon par-dessus um mur d’enceinte, pour le plaisir um peu anxieux, um allant le rechercher, de pénétrer dans une propriété inconnue. J’ignore sur quel gravier rebondit mon coeur quand je le lance par-dessus une tombe plus haute que le ciel, mais je sais que ce geste n’est pas vain : au bout de quelques secondes il me revient, empli de joie et aussi frais que le coeur d'un moineau nouveau-né.
*
Le jour où nous consentons à un peu de bonté est un jour que la mort ne pourra plus arracher au calendrier.
*
Une intelligence sans bonté est comme um costume de soie porté par um cadavre.
*
Le jour de l’enterrement de sa mère, C. a été piquée par une abeille. Il y avait beaucoup de monde dans la cour de la maison familiale. J’ai vu C. dans l’infini de ses quatre ans, être d’abord surprise par la douleur de la piqûre puis, juste avant de pleurer, chercher avidement des yeux, parmi tous ceux qui étaient là, celle qui la consolait depuis toujours, et arrêter brutalement cette recherche, ayant soudain tout compris de l’absence et de la mort. Cette scène, qui n’a duré que quelques secondes, est la plus poignante que j’aie jamais vue. Il y a une heure où, pour chacun de nous, la connaissance inconsolable entre dans notre âme et la déchire. C’est dans la lumière de cette heure-là, qu’elle soit déjà venue ou non, que nous devrions tous nous parler, nous aimer et même le plus possible rire ensemble.
*
Je marchais dans le parc de la Verrerie, ma mère à mon bras droit, quand j’ai vu sur ma gauche, vibrant au ras de l’herbe, un papillon dont les ailes violettes ressemblaient au fragment d’une lettre déchirée, tombée d’un ciel mystique. Ma mère marchait si lentement, essoufflée par la pente sur laquelle nous nous étions égarés, que j’ai pu pendant plusieurs minutes exercer avec le même soin ces deux activités qui couvrent le champ de ma vie et ne peuvent jamais être menées de front: être présent à ceux que j’aime, et m’absenter dans la lecture d’un texte écrit ce jour-là à l’encre violette et vibrant d’une vérité insoutenable.
*
Les lumières qui nous sont accordées sont si nombreuses que, même en le voulant, nous ne pourrions les gâcher toutes.
*
J’ai pendant un an rendu visite à mon père dans la maison où sa mémoire jour après jour rétrécissait comme une buée sur du verre, au toucher du soleil. Il ne me reconnaissait pas toujours et cela n’avait pas d’importance. Je savais bien, moi, qu’il était mon père. Il pouvait se permettre de l’oublier. Il y a parfois entre deux personnes un lien si profond qu’il continue à vivre même quand l’un des deux ne sait plus le voir.
*
Mon coeur ne s’éveille que rarement, mais quand il le fait c’est pour bondir aussitôt sur l’éternel comme sur une proie de choix.