Antonio Murciano é um macróbio, pois está com 95 anos, e continua em atividade. O poema “A visitante” foi-me sugerido, em dezembro de 2022, por meu amigo, poeta e músico, Sebastião Neto. Poema do qual eu não me lembrava, mas, revendo meus alfarrábios, percebi que já o havia lido na antologia Poesía religiosa (1939-1964), organizada por Leopoldo de Luís para as Ediciones Alfaguara de 1969. Postei a tradução no meu perfil no Instagram, e meu amigo Marra Signoreli, poeta, músico e tradutor, me enviou, em fotos, uma lenda que consta no livro Les contes de la Vierge de Jérôme e Jean Tharaud, da editora Plon, de 1940. Abaixo, o poema e o pequeno conto traduzidos. Tomei algumas liberdades nas traduções. A repetição de “Belém, Belém” da primeira e da penúltima estrofes foi inspirada em Manuel Bandeira. Tal sonoridade aparece em seus poemas natalinos. No conto “A última visitante” fiz algumas adaptações. Quem desejar ler em francês o livro completo, vai encontrá-lo neste link: https://www.maintenantunehistoire.fr/livres/les-contes-de-la-vierge/
P.s.
Quero agradecer ao
pela dica de postagem de poesia.A VISITANTE Em Belém, noite de Natal, Belém, Belém. A porta mal rangeu quando então ela entrou. Uma mulher sombria, magra e maltrapilha, rosto em rugas e o peso de quem mais pecou. Vinha suja de barro e do pó dos caminhos. A lua a iluminou, mas ela era sem sombra. Maria estremeceu; não a mula ou o boi, vão ruminando feno sem tomarem conta. Com seus cabelos longos mais que acinzentados, da cor de muito tempo, cor de vento antigo. Em seus olhos se abria aquele olhar primeiro, cada passo era um século no seu repiso. Tremeu Maria ao vê-la junto à manjedoura. Em suas mãos de barro, oh Deus!, que levaria? Sobre o Menino se curvou, chorou mil anos, e ofereceu-lhe a coisa que então escondia. A Virgem, assombrada, a viu, enfim, erguer-se. Era uma mulher linda, esbelta e luminosa! O menino mirava-a. Assim também a mula, o boi olhava-a e ruminava a sua prosa. Em Belém, noite de Natal, Belém, Belém. A porta mal rangeu no fim dessa visita. Maria, ao conhecê-la, chamou, gritou: “Mãe!” Eva olhou para a Virgem e a chamou: “Bendita!” Lágrimas de alegria na pedra e na estrela! Lá fora ainda pura, a neve cai sentida. Dentro, enfim, Deus dormindo sorria, mas tem, entre os dedinhos dóceis, a maçã mordida. Antonio Murciano (1929).
LA VISITADORA Era Belén y era Nochebuena la noche. Apenas si la puerta crujiera cuando entrara. Era una mujer seca, harapienta y oscura con la frente de arrugas y la espalda curvada. Venía sucia de barro, de polvo de caminos. La iluminó la luna, y no tenía sombra. Tembló María al verla; la mula no, ni el buey, rumiando paja y heno igual que si tal cosa. Tenía los cabellos largos color ceniza, color de mucho tiempo, color de viento antiguo. En sus ojos se abría la primera mirada, y cada paso era tan lento como un siglo. Temió María al verla acercarse a la cuna. En sus manos de tierra, ¡oh Dios!, ¿qué llevaría…? Se dobló sobre el Niño, lloró infinitamente y le ofreció la cosa que llevaba escondida. La Virgen, asombrada, la vio al fin levantarse. ¡Era una mujer bella, esbelta y luminosa! El Niño la miraba. También la mula. El buey mirábala y rumiaba igual que si tal cosa. Era en Belén y era Nochebuena la noche. Apenas si la puerta crujió cuando se iba. María al conocerla gritó y la llamó: «¡Madre!» Eva miró a la Virgen y la llamó: «¡Bendita!». ¡Qué clamor, qué alborozo por la piedra y la estrella! Afuera aún era pura, dura la nieve y fría. Dentro, al fin, Dios dormido sonreía teniendo, entre sus dedos niños, la manzana mordida. Antonio Murciano (1929).
A ÚLTIMA VISITANTE
Foi em Belém, de manhãzinha. A estrela acabara de se esconder, o derradeiro peregrino saíra do estábulo, e a Virgem bordava a palha, o Menino ia, enfim, dormir. Mas dormimos na noite de Natal?…
Suavemente a porta se abriu, afastada, de certa forma, mais por um sopro do que por uma mão, e uma mulher apareceu na soleira, coberta de trapos, tão velha e tão enrugada que, em seu rosto cor de terra, sua boca não era mais do que um ricto.
Maria assustou-se ao vê-la, como se ela fosse, ao entrar, alguma fada nefasta. Felizmente Jesus dormia! O burro e o boi mastigavam passivelmente sua palha e espreitaram o avançar da estrangeira sem turgir nem mugir, como se a conhecessem desde sempre. A Virgem, no entanto, não desgrudou os olhos dela. Cada passo dado pela mulher parecia durar a longuidão de um século.
A velha avançou e avançou, e eis que, agora, estava à beira da manjedoura. Graças a Deus, Jesus dormia o sono dos santos. Mas dormimos na noite de Natal?…
De súbito, Ele abriu os olhinhos, e Sua Mãe foi surpreendida ao ver que os olhos da mulher e os do filho eram exatamente parecidos e luziam com a mesma esperança.
Então, a velha se debruçou sobre a palha, enquanto sua mão procurava, no emaranhado de seus andrajos, alguma coisa..., que ela parecia demorar séculos para achar. Maria olhando-a sempre com a mesma inquietação. Os animais olhavam-na também, mas sempre sem surpresa, como se soubessem de antemão o que iria acontecer.
Enfim, depois de longo tempo, a velha retirou de seus trapos um objeto, e escondendo-o em sua mão, presenteou o menino.
Após todos os tesouros dos três Magos e das oferendas dos pastores, qual seria esse presente? De onde estava, Maria não podia vê-lo. Ela via somente as costas curvadas pelos anos, e que se se curvavam mais ainda quando inclinada sobre a manjedoura. O burro e o boi, todavia, viram e, ainda assim, permaneceram impassíveis.
Tal cena durou também longo tempo. Em seguida, a velha mulher ergueu-se, como aliviada do peso imenso que a atraía para a terra. Seus ombros não estavam mais curvados, sua cabeça quase tocava o teto, seu rosto havia recuperado milagrosamente a juventude. E quando ela se afastou da manjedoura procurando a porta, para desaparecer na noite de onde havia vindo, Maria pode enfim ver o seu misterioso presente.
Eva (era ela) acabara de presentear o menino com uma maçãzinha, aquela do primeiro pecado (e de todos os outros que vieram!). E a pequena maçã vermelha fulgurou nas mãozinhas do recém-nascido como o orbe do novo mundo que acabara de nascer com ele.
***
LA DERNIÈRE VISITEUSE
C’était à Bethléem à la pointe du jour. L’étoile venait de disparaître, le dernier pèlerin avait quitté l’étable, la Vierge avait bordé la paille, l’Enfant allait dormir enfin. Mais dort-on la nuit de Noël ?…
Doucement la porte s’ouvrit, poussée, eût-on dit, par un souffle plus que par une main, et une femme parut sur le seuil, couverte de haillons, si vieille et si ridée que, dans son visage couleur de terre, sa bouche semblait n’être qu’une ride de plus.
En la voyant, Marie prit peur, comme si ç’avait été quelque mauvaise fée qui entrait. Heureusement Jésus dormait! L’âne et le bœuf mâchaient paisiblement leur paille et regardaient s’avancer l’étrangère sans marquer plus d’étonnement que s’ils la connaissaient depuis toujours. La Vierge, elle, ne la quittait pas des yeux. Chacun des pas qu’elle faisait lui semblait long comme des siècles.
La vieille continuait d’avancer, et voici maintenant qu’elle était au bord de la crèche. Grâce à Dieu, Jésus dormait toujours. Mais dort-on la nuit de Noël ?…
Soudain, il ouvrit les paupières, et sa mère fut bien étonnée de voir que les yeux de la femme et ceux de son enfant étaient exactement pareils et brillaient de la même espérance.
La vieille alors se pencha sur la paille, tandis que sa main allait chercher dans le fouillis de ses haillons quelque chose qu’elle sembla mettre des siècles encore à trouver. Marie la regardait toujours avec la même inquiétude. Les bêtes la regardaient aussi, mais toujours sans surprise, comme si elles savaient par avance ce qui allait arriver.
Enfin, au bout de très longtemps, la vieille finit par tirer de ses hardes un objet caché dans sa main, et elle le remit à l’enfant.
Après tous les trésors des Mages et les offrandes des bergers, quel était ce présent ? D’où elle était, Marie ne pouvait pas le voir. Elle voyait seulement le dos courbé par l’âge, et qui se courbait plus encore en se penchant sur le berceau. Mais l’âne et le bœuf, eux, le voyaient et ne s’étonnaient toujours pas.
Cela encore dura bien longtemps. Puis la vieille femme se releva, comme allégée du poids très lourd qui la tirait vers la terre. Ses épaules n’étaient plus voûtées, sa tête touchait presque le chaume, son visage avait retrouvé miraculeusement sa jeunesse. Et quand elle s’écarta du berceau pour regagner la porte et disparaître dans la nuit d’où elle était venue, Marie put voir enfin ce qu’était son mystérieux présent.
Ève (car c’était elle) venait de remettre à l’enfant une petite pomme, la pomme du premier péché (et de tant d’autres qui suivirent !) Et la petite pomme rouge brillait aux mains du nouveau-né comme le globe du monde nouveau qui venait de naître avec lui.
Maravilha, Don João. Obrigado por esse presente.
Que lindo, João!!