Daniela Bordoni Silva, 37 anos. Escrevo e desenho sempre que posso. A despeito do tempo, eu leio. Com Deus sigo vivendo.
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QUESTÃO DE SANGUE
O chá era terrível. Ana olhava seu copinho espantada. Com uma careta ofereceu-o à mãe.
─ Prova, você não vai acreditar!
Amália o cheirou desconfiada e com um gole minúsculo encrespou os lábios olhando feio o copinho.
─ Que merda é essa? Mijo de gato?
Fingindo choque, Ana pôs as mãos na boca escondendo o riso. Depois que Ana passara dos vinte, sua mãe perdera os cuidados da língua. Dizia o que lhe vinha na cabeça e Ana ficou a se perguntar quantas coisas mais sua mãe havia mudado por ela. Amália jogou fora o chá e puxou a filha em direção à pequena padaria da rua. Olhando em volta, Ana reparou que agora a pequena cidade aos poucos crescia com suas novas lojas, passantes, carros e motos.
— A cidade está mudando, né, será que cresce muito?
— Besteira, disse Amália dando de ombros, é só por fora, maquiagem. As pessoas continuam todas iguais nesse fim de mundo, ninguém de fora fica aqui por muito tempo.
— Você podia vir comigo pra São Paulo...
— Acho grande demais, me esgota os nervos, entende?
Ana sorriu, sabia que sua mãe jamais deixaria aquela cidade, mas sempre achou engraçado ver a mãe ainda jovem, dona de um temperamento tão forte, apegada a um lugar tão sem atrativos.
Amália foi entrando na padaria seguida por Ana, a sineta da porta ressoou, indicando que mais fregueses chegavam. Serviu-se ela mesma de uma rosquinha coberta de açúcar da vitrine e estendeu outra para a filha, morderam com vontade o doce ainda morno. Nem se lembravam mais do chá horrível que haviam servido de amostra no mercado, o açúcar derretia na boca. Amália se dirigiu ao caixa e se pôs a conversar com seu Antônio. Falavam de como certos tipos de comida ficavam mais gostosos assim, comidos com as mãos. Amália sorria com os lábios sujos de açúcar. Ana assistia a tudo com secreta inveja. Sempre quis ser assim, solta, desinibida, a sensualidade tão natural. Mas havia puxado seu pai, um homem quieto, sempre com o nariz em livros. Herdou também suas orelhas avantajadas, lembrava com desgosto, mantendo-as cobertas com os cabelos. Ana nunca entendeu por que sua mãe escolhera seu pai como marido. Ela o amava, era verdade, mas a diferença era tanta...
Ana passou os olhos pelo interior da padaria demorando-se na mesa ao canto em que seu pai sempre se sentava. Ia todos os dias a tarde tomar seu cafezinho com pão de queijo. Quando calhava, levava-a junto e lhe comprava bolo e suco de laranja. Enquanto comiam juntos, piscava para ela e dizia;
— Se sua mãe perguntar, você só tomou um suco, hein!
Mas isso foi antes de tudo aquilo começar. Aquele maldito câncer. Ana chacoalhou de leve a cabeça, não gostava dessas lembranças. Continuou a vagar os olhos e viu sentadas, na mesa próxima ao balcão, cinco senhoras de preto bebericando chá. Os abutres, como Amália as chamava. Um grupo de viúvas mexeriqueiras que não aprovava a forma como Amália se portara na viuvez. Suas roupas coloridas as chocavam. Ana sabia que os abutres estavam ali reunidos por um só motivo: seu Antônio, que, há pouco mais de um mês, levara para morar com ele a esposa de Andrea, um italiano troncudo e amargo, dono da sapataria. O acontecimento foi a sensação da pequena cidade, e um mês era muito pouco para que esquecessem o escândalo. Ana viu sua mãe se despedir de seu Antônio e a seguiu. Enquanto saíam da padaria, alguém entrava apressado esbarrando em Amália. Ana olhou para trás e viu Andrea, os olhos lhe pareceram de louco. Fora da loja, Amália esfregava o braço xingando com o espanhol aprendido na infância.
Um estampido cortou a calma daquela manhã. Amália ficou estática, os olhos injetados de pânico em direção da padaria. Um novo estampido rompeu o ar e as pessoas entraram correndo. Amália tremia inteira e cheirava a urina, pela primeira vez, Ana viu sua mãe completamente vulnerável e teve medo, pareceu-lhe que seus olhos haviam apagado, desaparecia...
No aeroporto, Ana, preocupada, se perguntava se não seria melhor ficar mais um pouco, só havia passado uma semana desde aquela horrível cena. Nada tão chocante assim havia acontecido naquela cidade do interior de São Paulo.
Naquele dia, depois de ajudar sua mãe a se acalmar, Ana voltou à rua na esperança de encontrar alguém. Encontrou uma das abutres, Selma, perturbada. Contava o ocorrido ao vento.
─ Era o diabo! Era sim, vi seus olhos! Olhos do demônio, suas mãos tinham sangue... Entrou na padaria falando para todos ouvirmos: “ela fez isso... fez... não é minha culpa.” Daí tirou da calça a arma, pow!, bem no peito dele, eu vi. Os olhos do demônio! Olhou direto pra nós e pow!, na própria cabeça, tanto sangue, meu Deus! – repetindo o sinal da cruz, seguiu seu caminho contando tudo de novo.
Ana tremeu. Há pouco vivos, agora, mortos. O gosto horrível do chá voltava à garganta. Por toda a semana acordou com pesadelos, mas Amália, no dia seguinte, já estava completamente forte e recuperada. “Tão forte”, suspirou Ana.
Amália olhou feio para a filha.
─ Já disse que estou bem, você tem uma vida. Não vou deixar que perca mais dias de trabalho.
Ana jogou as mãos aos céus e deu-se por vencida.
─ Você é tão forte! Invejo você, mamãe. Eu puxei todo o lado de papai, até as orelhas. ─ com uma careta afastou os cabelos para mostrá-las melhor.
Amália olhou-a séria e balançou a cabeça.
─ No, mi amor, você puxou sua avó. As orelhas são dela. ─ Amália tirou da bolsa uma pequena fotografia de sua mãe. ─ Você é igualzinha a ela.
Confusa, Ana olhava a fotografia, tinha mais de sua avó do que se lembrava.
─ Mãe... Por que a vó nos visitava tão pouco?
De sua pequena bolsa, Amália tirou um pequeno cupom fiscal e ficou a torcê-lo com certo ar de desinteresse.
─ Quando eu tinha vinte anos fui estudar na Espanha. Mas voltei antes de terminar os estudos, esperava você. Ela nunca me perdoou por isso. Mas te amava muito. Segurando o rosto de Ana, disse séria:
─ Agora, não pense mais nisso, fique com a foto. Não se esqueça, mi hija, você tem nosso sangue. Com um abraço apertado, Amália a conduziu para o portão de embarque. Ana sentiu sua pressa. Pelo embarque ficou a olhar sua mãe se afastar. Não costuma ser ao contrário essas despedidas? – pensou. Mas em seu cerne, sabia, sua mãe não é pessoa de ficar a olhar alguém que parte...
Esperando o avião, Ana pegou a foto de sua avó outra vez. Enquanto olhava a imagem teve um sobressalto. Por segundos que pareceram eternos todo o entorno silenciou-se. Discou depressa o número de sua mãe. Ninguém atendeu. Olhando o celular mudo, pensou assustada: “Mas papai nunca esteve na Espanha...”.