BORGES E PRUDHOMME
Deparei-me com o soneto de Jorge Luis Borges (1899-1986) no livro El outro, el mismo, na sua obra poética completa, isso faz muito tempo. Segundo o grande argentino era o livro que ele mais apreciava. O soneto de Sully Prudhomme (1839-1907) retirei-o do Itinerário de Pasárgada, de Manuel Bandeira (1886-1968); o soneto do francês cotejei com uma edição virtual e há algumas ligeiras mudanças de pontuação, fora um erro estranho de digitação. Coisas da Internet. Conservei a de Bandeira. O “natura” do 10º verso fica assim mesmo, além da facilidade rímica, também pelo sabor de contração comum ao século do poeta francês. O nome do filósofo, no final do soneto, fica Bento mesmo por causa da métrica, além de condizer com o espírito do poema.
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ESPINOSA
As translúcidas mãos desse judeu
que lustram na penumbra seus cristais
e essa tarde morrendo é medo e breu.
(As tardes dessas tardes são iguais.)
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As mãos e o seu espaço de jacinto
que empalidece no confim do Gueto
quase inexiste para esse homem quedo
que está sonhando um claro labirinto.
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Não o perturba a fama, esse parelho
de sonhos com os sonhos de outro espelho,
nem o amor temeroso dessas virgens.
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E livre da metáfora e do mito
lustra um árduo cristal: o infinito
mapa d’Aquele dono das origens.
Jorge Luis Borges
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SPINOZA
Las traslúcidas manos del judio
labran en la penumbra los cristales
y la tarde que muere es miedo y frío.
(Las tardes a las tardes son iguales.)
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Las manos y el espacio del jacinto
que palidece en el confín del Ghetto
casi no existen para el hombre quieto
que está soñando un claro laberinto.
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No lo turba la fama, ese reflejo
de sueños en el sueño de outro espejo,
ni el temeroso amor de las doncellas.
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Libre de la metáfora y del mito
labra un arduo cristal: el infinito
mapa de Aquel que es todas Sus estrellas.
Jorge Luis Borges
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UM HOMEM BOM
Era um homem tão doce, de saúde frágil,
Que de tanto polir os cristais de mil lentes,
Pôs a essência divina numa fórmula ágil,
E o mundo apavorado o viu como um descrente.
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O sábio demonstrou, com um simples adágio,
Que tanto o bem quanto o mal são velhos dementes,
E os mortais são fantoches que devem seu ágio
Aos fios necessários de mãos descontentes.
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Admirador devoto da Santa Escritura,
Não poderia ver um Deus contra a natura,
Ao qual a sinagoga se opunha raivosa.
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Longe dela, polia os cristais de mil lentes,
E socorria os sábios contando astros e entes.
Era um homem tão doce, Bento de Espinosa.
Sully Prudhomme
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UN BONHOMME
_C’était un homme doux, de chétive santé,
Qui, tout en polissant des verres de lunettes,
Mit l’essence divine en formules très nettes,
Si nettes, que le monde en fut épouvanté.
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_Ce sage démontrait avec simplicité,
Que le bien et le mal sont d’antiques sornettes,
Et les libres mortels d’humbles marionettes
Dont le fil est aux mains de la nécessité.
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_Pieux admirateur de la sainte Écriture,
Il n’y voulait pas voir un Dieu contre nature;
A quoi la synagogue en rage s’opposa.
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_Loin d’elle, polissant des verres de lunettes,
Il aidait les savants à compter les planètes.
C’était un homme doux, Baruch de Spinoza.
Sully Prudhomme