A voz da venda reclama que não quer morrer. Assim transcrevo-a, que é uma forma de sobrevida. Débil refrigério antidesaparição. Sua batalha, agora, venda, é contra o esquecimento travestido em traça, indiferença leitora, limbo virtual, estupidez programada. Ela, não sem um traço de remoque, repete provérbios de meu pai: “Melhor ouvir do que ser surdo”. Faz-se espectadora entre os fregueses e lança outro adágio paterno: “Quando digo que o burro é pelo de rato é porque o cabelo está no bolso.” Com seu indicador encardido aponta coisas que por um triz escapam de não serem nomeadas – serenga, lebanca, lambedeira, simonte, painço, gangôlo, carbureto, bagarotes. E eu, servente sem saída, transcrevo a voz da venda.
O ser, ou seja, a venda convoca o meu nome sem permissão. Indisciplinada no seu autoritarismo afetivo ressalta, de esconderijos esquecidos, a ambiência de pinturas esfumadas. E a cor, o gesto, a luz prescindem de palavras. O mundo antes. O mundo-coisa que impõe presenças de terrífico maravilhamento.
Os pedintes dos sábados. O velhinho caixa-de-fósforo. O pseudo-afortunado desfeiteando preços. O desvalido, magro, feio, fala roufenha, em súplica desesperançada, não pelo que irá receber, pois receberá, mas por sua trajetória vivida. Como se chamava o arcaico roceiro? Deslembro. Passa a ser chamado de “homem que não morreu e não tem inveja de quem morre.” A venda oferece um tamborete e quem primeiro se confessa é Maria Fedô. Pedra sobre a cabeça. Delírio de trilhões, quantia de Maria Fedô ninguém possui. A memória é Maria Fedô – paga o que não tem, ganha o que não quer, gasta o que desusa. Deambula esfarrapada pelas ruas da cidade. Mora numa loca. O Morro é seu castelo. Será esta a metáfora? Calcário? Um imenso bloco de rocha no meio do nada?