O que lembro, tenho. Guimarães Rosa.
O movimento é de descida e recuo. Não para trás. Num contrassenso fareja a origem. Decididamente a sotoposto, mas no ar da rua semideserta, num dia de branco, em Salvador. Das metáforas observadas sem escolha ainda, a primeira que baila é galeria. Ramificações por inúmeros cômodos que alastram profundezas partindo de um caule comum. Qual? O homem que anda na calma insegura da Belém do Pará, no Jardim Brasil. Prefere observadores neutros – muros sujos, amendoeiras em maio, fachadas de arquiteturas indistintas. Que dizem desse que vai? Coxeia um pouco, dissimulando, de alguém sofrendo o peso invisível de corredores em busca da origem. A barba, manchada de gris, torna o seu rosto mais ovalado. Alheado, não distraído, olha o vácuo da rua projetando que a galeria, imagem já descartada, nascesse do espaço em torno e num desenho vivo fizesse toda a memória, que neste instante o acomete – o atravessasse. Sim, ele ambiciona a translucidez da memória. Talvez, também por isso, coxeie.
A segunda metáfora que lhe assalta é porta. Limiar cansado de sua própria figura. Portas são um perigo em todos os sentidos. Há monstruosas alegrias esperando brecha. Ele consulta o bolso direito da calça e opta por deixar as chaves domésticas em paz. Entretanto (conjunção que vem a calhar), do outro lado, o mistério não é o que ele desconhece. Já cruzou e recruzou a soleira vezes sem conta, mas o sabido não deixa de emanar os seus enigmas, e por mais palpáveis que sejam, apresentam sempre uma aresta não tocada ainda. Desse modo, porta é insuficiente. Não há o que deixar passar, para ele está tudo exposto como o sol das doze e meia, mas é preciso descer. Foi aí que veio a terceira e desistida metáfora – escadaria.
Forma dúbia, de mão dupla. Ao carregar consigo a povoada paisagem de mais de quatro décadas não é preciso retornar, apenas rever. Porém, agora, a ideia de movimento de descida começa a ser insatisfatória. Como explicitar com degraus um abismo ao avesso que o absorve, o contém e lhe dá estrutura? Se ele, o homem que acabou de entrar no shopping, é o resultado indivisível do vivido que continua sendo? Ele transporta, sem jamais entregar, o não desacontecer que se acumula e se expande no passado. Esta é questão – o passado não tem fim. Cresce como planta que carrega, em cada fibra, os sumos disponíveis de todos os elementos. A memória lateja em cada músculo porque é parte indissociável do narrador que se assume em primeira pessoa; ao ir para o guichê, meditar sobre a antropologia das filas brasileiras e receber minha senha.