Rua da Graça 07
Dicionário aleatório de coisas afins: meu avô paterno, Presépio, baianidades, ápice.
VALDOMIRO FERNANDES SILVA
Naquela noite, sob a luz do poste, na penumbra da rua quase deserta de uma cidade do interior, ele parecia vir do fundo das eras, de um tempo sem memória. A longa surdez havia suavizado sua voz. As mãos como garras esculpidas pelos anos de trabalho na roça. Na cidade, ainda se dedicava à habilidade rústica de cavar o cerne de troncos a fogo e ferro para fazer pilões. O encontro foi, talvez casual, que é, como diz León Bloy, o novo nome do Espírito Santo. Do que falamos? Lembro da delicadeza expressiva do seu rosto curtido de sofrimento e anonimato em contraste com a brutalidade que diziam dele. O corpo com mais de 80 anos foi gentil com o neto. A noite ainda persiste estranhamente suave. E ele se deslocou com a digna dificuldade dos muito velhos para dentro da escuridão. Morreu pouco tempo depois.
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PRESÉPIO
A estrela se avizinha
e o mundo vira um vértice
pra descida do Eterno,
o tempo se recolhe.
Anjos em ladainha
transluzem semibreves,
São José é o silêncio,
a Virgem é uma prece,
o boi é pensamento,
o carneiro subscreve,
o Menino – todos sabem:
tem nas Mãos o universo.
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BAIANO
O baiano é uma entidade. Quer dizer, pode-se até tentar depreendê-lo em estudos sistemáticos em várias áreas do saber humano, como antropologia, sociologia, filosofia e outras vias, mas ele permanecerá inapreensível. Sua personalidade percorre, sem perder a unidade nem descambar para a esquizofrenia, todas as letras do alfabeto. Se há baianos que são gregos clássicos comendo vatapá — não me deixam mentir os grandes poetas daqui que possuem essa índole — há outros que preferem o escracho do verbo solto no boteco ou na fila da lotérica. Há o baiano barroco, literalmente falando. São aqueles que são o paradoxo encarnado, respiram as contradições do menos e do mais, do alto e do baixo, do silêncio e da eloquência, do gelo e do fogo etc. num só conjunto e na maior tranquilidade.
Um amigo meu é um místico, uma vida toda voltada para orações, meditação, jejuns, contemplação do mundo criado etc. Outro é a gandaia em pessoa. Um carnaval ambulante. Com eles aprendi que o baiano é um acontecimento distinto e independente. Eu sei, eu sei, soa a regionalismo exacerbado e barato, mas conviva e comprove. O fato de ter sido Salvador a primeira capital do Brasil não passaria ileso pela psique do baiano. Daí seu nascimento em forma de inauguração. E tal fato, convenhamos, marca definitivamente todo um povo. Nós baianos temos o carma da primogenitura. E, em termos, trocado por um prato de lentilhas não diminui em nada essa condição. Como bem diz mestre Gilberto Freyre, o termo baiano traz em si a marca da ambiguidade: por um lado, foi a representação maior de civilidade e polidez aristocrática; por outro, a inépcia para a ação viril e militar.
O baiano vive a existência à revelia com sua filosofia do cacete armado. Ele prefere o desconcerto ao redor de um eixo mais ou menos fixo e, se possível, histórico. Explico. Palacetes, casarões coloniais, monumentos centenários e outras edificações mais ou menos suntuosas, são os eixos com alguma fixidez para que ele, o baiano, desenvolva, quer dizer, edifique seu cacete armado. Estes são as construções improvisadas de qualquer espécie: casa, barraco, bar, boteco etc. Se o exterior é reflexo do interior, logo, ser baiano é uma experiência aberta, um arranjo que se molda ao instante e dele equilibra ou desequilibra a vida inteira. Baiano não morre de depressão, mata de pirraça.
Como atestar a autenticidade de um baiano? Há uma prova gastronômica simples, esta: rejeitou farinha, acarajé ou pimenta não é baiano. E se for, nasceu com defeito. Pois todo baiano tem um pé no dendê. Ele é uma entidade.
Dicionário amoroso de Salvador. São Paulo: Casarão do Verbo, 2014.
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ÁPICE
Ando ao sol, o sol da terça-feira.
Em mim tudo é graça imerecida.
Dói, ao meio-dia, a vida inteira,
segundos que valem minha vida.
Ao sul do labirinto. Itabuna: Mondrongo, 2022.